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A poética do melhor cliente​

Por Caren Gabriele

    Estava com um amigo na sorveteria do meu bairro, numa noite particularmente quente no inicio do outono. Enquanto esquadrinhávamos os freezers a procura dos sabores mais estranhos e desconexos que ousássemos combinar, eis que surge um quarto elemento no cenário desolado de uma segunda-feira qualquer.

       Um jovenzinho de roupas desgastadas e sacola plástica na mão, carregando sabe-se lá o quê, sabe-se lá para onde. Pequenas cicatrizes no rosto e nos braços moreno, talvez de uma catapora recém curada, talvez de outras mazelas que parecem acompanhar a infância dos verdadeiramente desfavorecidos e o cabelo descolorido nas pontas como “está na moda”.

       Era uma dessas criaturas a quem parece ser impossível adivinhar a idade. O corpinho pequeno e absurdamente magro não devia contabilizar mais do que dez, doze anos com muito esforço. O olhar e a postura, por outro lado, contavam uma história muito mais antiga e, se houvesse justiça nesse mundo, jamais seria encontrada em uma criança.

- Tio, o senhor me compra um sorvete e deixa aqui pra mim depois?

      Repetiu a frase mais duas ou três vezes até ter certeza de que havíamos entendido. Sua voz, carregada de gírias e de uma maturidade inesperada. Olhei para o garoto. Já o havia visto, mas não me dera verdadeiramente conta de sua presença até então. Olhei para o rapaz que me acompanhava. Este, já estava do outro lado da sorveteria, escolhendo um daqueles famosos picolés recheados para o menino. Continuei assistindo a cena nesse torpor que às vezes me toma e me deixa no lugar de quem vê a banda passar.   

        A criança sumiu no quase inexistente movimento daquela avenida assim que teve em mãos o doce que queria. Um suave “obrigado” lhe escapou dos lábios antes de seguir com sua vidinha muito mais potente que a nossa, que temos quase o dobro de sua idade. A terceira personagem ainda não citada entrou em cena nesse momento.

       A dona do estabelecimento, sentada atrás do balcão, observava, assim como eu, o desenrolar da trama sem fazer interferências além das que lhe cabia no papel. Enquanto nos sentávamos, finalmente, naqueles confortáveis bancos de lanchonete que é cada vez mais comum encontrar por aí, e que dão um ar vintage ao ambiente, contou-nos:

- Esse moleque deve ser o meu melhor cliente. Aparece aqui pelo menos umas três ou quatro vezes por dia, e sempre ganha alguma coisa.  

       Olhei para o meu amigo. Não sei como ele se sentiu naquele momento, mas a noticia me agradou.  Não conhecia a história ou mesmo o nome do garoto, mas agora sabia que os pequenos prazeres infantis não lhe foram roubados, mesmo que para ele fosse muito mais difícil tê-los. Talvez realmente não houvesse justiça no mundo, mas com toda certeza, havia poética.

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