top of page

A acepção desse sorriso. 

Por Carolina Cordeiro

       Acordar, levantar, olhar o celular, conferir E-mail; Facebook; Instagram; Twitter e Snapchat; ler comentários de pessoas quase anônimas elogiando seu corpo; seu cabelo; sua roupa; escovar os dentes, comer, se arrumar, escovar os dentes, sair, pegar o ônibus, ser encarada pelo motorista; pelo cobrador; pelos passageiros; descer, ser cantada, sorrir e acenar com certo desconforto.    

     Andar, chegar, ser encarada pelo chefe; pelo professor; pelo colega. Conversar com a menina sentada ao lado, ouvir que Mariazinha é uma safada, pois posta foto de biquíni no Face, sorrir e acenar com certo desconforto. Sair, almoçar, ouvir as novidades contadas pelas amigas, escutar que a esposa do professor perdoou a traição do marido:

‑ Perdoou? Como assim? Que trouxa!

      Sorrir e acenar em desconforto.

      Pegar o metrô, muito cuidado, não ficar de costas para alguém, procurar uma parede, ali, encostar-se de costas, se encolher, não ser vista. Ouvir música, ocultar o mundo, descer na estação, subir as escadas, ouvir barulho de moto, travar, “Passou, ufa!”, alívio, perceber um homem atrás de si, travar, acelerar o passo, tremer, abrir o portão do prédio onde mora, entrar, “Ufa!”, alívio, subir, encontrar o vizinho nas escadas, ouvir outra cantada, “Esse cara não é casado?”, sorrir e acenar com certo desconforto.

       Abrir a porta, trancar a porta, conferir se realmente a trancou, verificar o celular, ler as mensagens, o encanador vem em casa hoje, “Recebê-lo sozinha?”, ligar para a mãe; para o pai; para o amigo; “Não pode vir? Só por algumas horas... ok.”, a campainha toca, atender, é o encanador, ser encarada, “Puts, estou de shorts.”, ouvir alguma piada sobre estar sozinha em casa, sorrir e acenar com certo desconforto.

      Oferecer água; café; “Nada? Ok.”, pegar o celular, ligar pra alguém, qualquer um, só pra não estar completamente só com um cara estranho, ouvir um chamado, ir até o encanador, “Terminou? Ah, obrigada! Adeus.”, acompanhá-lo até a porta, se despedir, “Ufa!”, alívio, trancar a porta, verificar se está trancada. 

     Receber a ligação do rapaz com quem está envolvida há duas semanas, marcar um encontro, se arrumar, sair, chegar, ser elogiada pelo seu corpo; seu cabelo; sua roupa; conversar, contar sobre seu grupo de pesquisa, sobre o artigo que está escrevendo, a idéia de um novo projeto, ser interrompida, “Se eu já namorei? Não.”, “ Se eu sou virgem? Não.”, ser indagada sobre como pode não ser virgem se nunca namorou, encará-lo, ouvi-lo dizer que era brincadeira, sorrir e acenar com certo desconforto.

       Ser levada até sua casa, se despedir, sem beijo, abrir o portão, subir, entrar, trancar a porta, verificar se está trancada. Ligar para sua mãe, contar sobre o encontro, desligar, tomar banho, olhar-se no espelho, entender que se você nasceu com cromossomo XX, que seu cérebro nunca vai ser tão admirado quanto sua virgindade. Sorrir e acenar com certo desconforto.

bottom of page