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Contaminação

Por Giulia Santana

       Uma das minhas frequentes brincadeiras de criança consistia em tentar descobrir quanto tempo conseguiria ficar quieta antes de sentir vontade de gritar. Não durava muito tempo - um ou dois pensamentos depois, eu já estava pulando pela casa atrás de algo que pudesse colocar minhas ideias em prática o quanto antes. Bastaram algumas dessas brincadeiras para que eu percebesse que a vida era muito mais colorida em minha mente do que eu poderia fazer com que ela fosse na vida real.

       Ainda criança, quando desenvolvi a obsessão infantil de inventar coisas, a máquina que transformava pensamentos em realidade era meu objetivo máximo, mas sua existência dependia da minha habilidade de transformar a ideia em algo real, o que a transformava em um paradoxo.

     Nos primeiros anos da minha adolescência descobri que melhor forma de transformar meus pensamentos e desejos mais profundos em realidade era fazendo deles palavras escritas. Isso ainda ressuscitou algumas frustrações antigas, já que percebi que não existe forma de transmitir meus pensamentos completos, em sua forma pura e quase que inconsciente, para o papel. Foi assim que soube que escrever é permitir que minha imaginação se contamine.

    O que imagino antes de escrever a princípio vem de uma parte intocada da minha alma, sua essência é muito profunda, não corrompida por edição nenhuma, seja da mente ou da boca. Já o que escrevo, se contamina ainda dentro de mim e escorre por meus dedos para receber ainda mais contaminação a partir das crenças e percepções de meus leitores. Nada se mantem puro quando se torna concreto. Tudo se contamina a ponto de se tornar algo novo e quase irreconhecível. O que eu planejava dizer, de repente, muitas vezes até morre para que algo novo nasça.

    Posso moldar um universo com minhas mãos e o toque de outra pessoa o destruir. Seus próprios pensamentos podem se sobrepor aos meus e mudar a forma como eles se expressam. E ainda, eu posso ser contaminada por mim mesma. Aquele pensamento puro, a ideia simples e delicada se torna algo completamente diferente a partir de novas experiências que vivencio e de mudanças súbitas que tenho em minhas crenças e desejos. No momento em que as palavras chegam ao papel, já são outras. E ainda se tornarão outras e outras quanto mais mentes tocam e quanto mais são tocadas por elas.

 

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